quarta-feira, 5 de agosto de 2009

QUASE SEMPRE ELES ESTÃO NA IGREJA, MAS SÃO MATADORES DE ALUGUEL

QUASE SEMPRE ELES ESTÃO NA IGREJA, MAS SÃO MATADORES DE ALUGUEL.
Por Afonso de Sousa Cavalcanti, com a participação de Pedro Gondasky.

Hora boa para contar histórias é o momento em que a gente descansa com alguns parceiros de trabalho. Quando as pessoas ficam remoendo as dificuldades do serviço que irão fazer, elas sofrem por antecedência. É o mesmo que querer resolver algo que ainda não se sabe como irá acontecer.
- Assim, de conversa em conversa, já vimos varando mais de vinte e cinco anos de serviço na nossa granja. E para que a gente não se estresse, eu pediria ao compadre Pedro Horta que narrasse aquele conto do matador rezador, afirmou Filinto Petsburgo.
Pedro Horta era papudo e enchia muito mais o papo, quando alguém o convidava para falar, contar ou organizar alguma coisa. O homem ficou cheio. Sentou-se bem apoiado na parede do barracão, onde os trabalhadores descansavam do almoço. Agradeceu a Filinto e pôs sua máquina de contar história para funcionar. Primeiro acendeu um cigarro, coçou a mão e disse:
- Peço licença! Se quiserem perguntar enquanto eu conto, talvez o que vou contar ficará até mais engraçado.
Ernestino, sujeito muito católico, não perdia sequer uma missa aos domingos, meio cochilando, disse que gostaria de fazer uma ressalva:
- Vê lá Pedro Horta como você vai meter a boca nas pessoas que gostam de rezar e que são amigas do padre Ernesto.
- Nada disso, Ernestino, só vou dizer a verdade a respeito de que contou meu tio Inácio, na semana passada. Esta história se passou numa cidade pequena que fica próximo de Curitiba.
Todos fizeram absoluto silêncio e o contador de história começou:
- Um tal Iracildo Menezes Conradelli, filho de imigrantes europeus, batalhou muito, desde menino. Já aos quarenta anos, depois de tantos trabalhos, comprou um sítio de cinco alqueires paulistas. Sítio bem ajeitado, com boa aguada e terra fértil. Ali instalou uma granja de porcos para dar emprego aos seus dois filhos (Tampinha ou Junior e Ana Carolina). Em casa, ao todo eram cinco pessoas. Morava com eles a mãe de Terezinha, Dona Ofélia Marichelli. Trabalhar mesmo era só Iracildo, que começava antes do raiar do sol e só ia para o descanso depois do sol posto. Os outros ajudavam em tarefas menores.
Por incrível que pareça, no momento da narrativa da história, aconteceu o inesperado. Uma carreta carregada de milho bateu de ré e quebrou parte do muro da granja. Todos os trabalhadores saíram correndo para socorrer ou apenas ver o acontecido. A história parou no meio.
No dia seguinte, no mesmo horário do almoço, todos descansavam. Ernestino, agora não mais cochilava e por isso puxando a língua pediu:
- Já que o silêncio é bom, eu gostaria de pedir que Pedro Horta continuasse a narrar a história do matador, aquela que ele narrava no dia de ontem.
Novamente, Pedro Horta, contador de histórias, encheu o peito de alegria e continuou:
- Já contei que o Iracildo montou a granja e criava porcos e contava sempre com o trabalho de seus familiares. Muito bem! É daqui por diante que a narrativa vai ficar melhor. Até agora, esta história é semelhante a dezenas de acontecimentos que temos e que inclusive se passam em nossa cidade de Pato Branco.
O Horta gostava de detalhar as histórias que contava. Tinha ele um jeito especial de indicar os momentos em que os personagens de uma história são considerados honestos e éticos e também quando procedem de forma inversa. Vamos chamar de volta o Pedro Horta para que continue. Ele se põe em pé e parece falar com as mãos:
- Até me arrepia falar este trecho da história. Iracildo estava aos poucos melhorando sua situação financeira, mas aconteceu uma desgraça na vida dele.
- Uma desgraça! Meu Deus! Uma desgraça. Comentou Camargo.
- Muito mais que isso, Camargo. Você já pensou o quanto deva ser difícil o sujeito levar uma rasteira econômica e perder tudo da noite para o dia, simplesmente porque avalizou um empréstimo bancário para um amigo. O tempo decorreu. O amigo não tinha dinheiro e nem outro bem para pagar e por isso o Banco do Brasil hipotecou seu sítio.
- Amigo! Que amigo que nada! Se um sujeito fizer assim com os outros, merece ser tremendamente castigado. Se isto fosse comigo, acho que eu seria capaz de matá-lo. Afirmou Rafael.
- Cada um de nós teria uma atitude porque não somos sangue de barata, continuou Pedro Horta. Iracildo pensou muito qual seria sua atitude, pois perdeu tudo. Voltaria à estaca zero. Para não dizer que o homem perdeu tudo, ainda restou-lhe em depósitos bancários uma quantia superior a cinco mil cruzeiros, numa conta que vinha poupando. Pensou em usar o dinheiro para fazer vingança contra o caloteiro do título que ele assinou. Montou a cavalo e desesperado saiu à procura de encontrar uma pessoa que pudesse tirar a vida do caloteiro, que por sinal chamava-se Pedro Jacinto. Não precisou andar muito. Resolveu parar na venda das Flores. Ali avistou um sujeito cabisbaixo, trajava roupas simples, calçava botina domingueira e usava chapéu. Aparentava-se bem amadurecido. Iracildo olhou para aquele homem e ele percebeu seu olhar. Levantou-se e acenando com a mão pediu que ele fosse para fora para conversar.
Iracildo, já com a maldade abalizada na mente, foi ao encontro do sujeito cabisbaixo, embora não podendo perceber seu rosto. Ouviu dele:
- O senhor procura por mim?
- Talvez sim! Disse Iracildo.
- Procuro por alguém que possa fazer um serviço especial.
- O senhor fala de tirar a vida alheia?
- Isto mesmo. Tenho um serviço dessa natureza. Pago bem. Pago à vista.
O tal sujeito, olhando para baixo, para esconder as cicatrizes do rosto, balbuciou numa voz fanhosa:
- Conheço alguém que é tiro e queda, é toma lá e dá cá!
- Onde posso encontrá-lo?
- É muito fácil! Basta entrar na Igreja do Rosário. Ele costuma estar rezando lá quase todas as manhãs. Fica sempre do lado direito da igreja, na frente, numa ala meio escura. Dá um tempinho aqui, enquanto eu saio e ninguém perceba que conversamos, depois o senhor vai para a igreja.
O homem desesperado da vida, para passar o tempo pedido por seu interlocutor, tomou ali um café com pão e manteiga e depois foi para a igreja do Rosário. Enquanto isto, o informante saiu e sentou-se do lado direito da igreja, bem na ala meio escura que ele descrevera. Ali ajoelhado, debulhava o rosário. Balbuciava alto, fingindo que rezava, bem no momento em que Iracildo entrava para pedir o tal serviço. Iracildo olhou-o, agora sem chapéu e trajado com um paletó surrado. Não viu nele nada que o identificasse com aquele que o recebeu na venda das Flores. O diálogo entre os dois começou. Iracildo perguntou-lhe:
- O senhor executa vidas humanas?
- Sim, executo, só que gosto de receber adiantado. Onde é o serviço?
- É na estrada do Conforto, km dois. O nome dele é Pedro Jacinto. Pago dois mil e quinhentos cruzeiros agora e igual quantia, no momento em que o senhor trouxer a orelha dele como garantia de que o matou.
- Já entendi. Sou homem de pouca prosa e de muita oração. Fico sempre aqui na igreja. Sou amigo do padre Anselmo, de muitos comerciantes, dos professores da cidade e das crianças da catequese. Preciso que o senhor seja discreto: não reconheça quem sou, não informe nada a ninguém e não se arrependa a partir desse nosso contato. Vou fazer o serviço.
Iracildo deu-lhe os dois mil e quinhentos cruzeiros e prometeu que ali voltaria em breve para novas conversas. Para disfarçar também, ajoelhou-se um pouco distante do velho e foi rezar. Olhando de rabo de olho, viu que o contratado saiu da igreja.
Após fingir que havia rezado um pouco, Iracildo voltou para casa. A consciência dele pesou e então caiu em si do grande erro que estava fazendo. Mesmo não tendo comentado nada com seus familiares, sobre sua falência, sentiu um grande sufoco. Montou a cavalo e saiu a galope. Foi à procura do bandido que havia contratado. Entrou na igreja, nada! Na venda das Flores, nada! Nos vários lugares da cidade, nada! Parou o cavalo ao lado da praça, numa rua paralela com a Avenida Central. Dirigiu-se para o banheiro público da praça. Ali entrou. Deparou-se com o bandido de aluguel. Falou com ele:
- Meu senhor, por favor! Não faça o que combinamos. O que já lhe dei é seu. Não execute o Pedro Jacinto, pelo amor de Deus! Fiquei pensando que não é só ele o culpado nesta história. O Banco do Brasil também é culpado, pois foi o banco que arranjou o empréstimo a Pedro Jacinto. Foi o banco que tomou meu sítio
O velho olhou para ele e com a mesma voz fanhosa comentou:
- O senhor se lembra do que eu disse: sou homem de pouca prosa e de muita oração. Fico sempre aqui na igreja. Sou amigo do padre Anselmo, de muitos comerciantes, dos professores da cidade e das crianças da catequese. Preciso que o senhor seja discreto: não reconheça quem sou, não informe nada a ninguém e não se arrependa a partir desse nosso contato. Vou fazer o serviço.
Para evitar dúvidas e quase matar Iracildo do coração, arrancou o revolve e afirmou:
- Passa o restante do dinheiro. Cumpra sua promessa, se não quiser morrer agora ou mais adiante. Toma sua encomenda!
Jogou nele a orelha que cortou do Pedro Jacinto e ainda com essa afirmação:
- o serviço foi bem feito. Ninguém viu nada. O agora defunto dorme, após ter comido sua marmita de comida. Matei-o sangrado. Uma facada só. Ele nem sentiu.
De fato, o serviço foi bem executado. Aconteceu o enterro. Os parentes choraram. A viúva do falecido veio desculpar-se com a família de Iracildo. O tempo decorreu. O velho matador de aluguel possivelmente executou diversas outras tarefas como essa.
- Pelo amor de Deus, Pedro Horta! Você é meio herege, mas não precisa ficar culpando os católicos que eles são rezadores, enganadores do povo, matadores de aluguel. Essa é demais. Eu sabia que de sua boca sairia uma blasfêmia dessa. Comentou Ernestino.
- Não Ernestino. Não contei isso para pregar peça nos católicos. Narrei o fato porque isso aconteceu de verdade. Veja bem: para finalizar a história, fiquei sabendo que em 1985, era vigário da paróquia do Rosário o padre João Melchior Stashechi. O vigário celebrou missa de corpo presente pela alma do então matador de aluguel. Dizem que ele morreu de enfarto do miocárdio, na quinta sexta feira da quaresma, no momento em que os fiéis celebravam a via-sacra. Ele caiu bem no momento da contemplação da estação, quando Simão Cirineu ajuda Jesus a levar a cruz. Quero crer que o velho tenha se arrependido com o peso da cruz sobre suas costas.
- Outra blasfêmia, Pedro Horta. Jesus é exigente com aqueles que o querem seguir. Não é por um arrependimento simples que ele perdoa. Jesus exige que os culpados vão em público e se confessem pecadores, devedores. O fruto do roubo é necessário que seja devolvido com juros e correção monetária. Se houve morte, a coisa deve ser mais exigente ainda, respondeu ironicamente Ernestino.
O tempo de almoço se esgotou. A história foi boa. Pedro Horta saiu satisfeito porque fez desafios aos colegas sobre vários assuntos: como contar história; a maioria dos crimes graves, quase sempre, é premeditada; os bandidos matadores, bem como os que encomendam crimes hediondos, muitas vezes se aparentam como pessoas boas, tranqüilas e religiosas; as instituições bancárias, em nosso país, são grandes responsáveis pelo empobrecimento de pequenos e médios proprietários; a maioria dos dirigentes das igrejas cristãs não percebe, que muitos dos fiéis que freqüentam as igrejas e aparentam piedade, estes são corruptos, matadores de aluguel e imorais.

2 comentários:

DEMA disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
DEMA disse...

Parabéns pelo conto, Cavalcanti.
Que outras produções possam ser postadas. Serão bem-vindas. Repasse o blog ao coadjuvante. Vamos ampliar a Academia.